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terça-feira, 27 de maio de 2014

Perguntas de criança






Cabeça de criança não é gaveta onde se guardam informações. É canteiro onde nascem perguntas


CABEÇA DE CRIANÇA não é gaveta onde se guardam informações. É canteiro onde nascem perguntas. E nunca se sabe quais foram as sementes que um anjo misterioso plantou ali. Mas se sabe pelos brotos que são perguntas nascidas de olhos espantados, que foram pegos de surpresa, sem saber.
Alberto Caeiro disse bem: "Sei ter o pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras. Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo."
Pois a pergunta que a Andréia, afilhada minha de oito anos, me fez nunca ninguém havia feito. Sei disso porque nunca me foi dada a resposta.
"-Na história da Cinderela, quando tocassem as 12 badaladas, não era para quebrar o feitiço e tudo voltar a ser o que era antes?"
Concordei e confirmei.
-"Isso. O vestido de baile virou vestido de cozinheira e a carruagem dourada virou abóbora madura."
"-Então", disse ela preparando o xeque-mate, "por que é que o sapatinho de cristal continuou a ser sapatinho de cristal, encantado, e não desencantou virando tamanco?"
Fiquei mudo.
Ela percebeu um erro na história: o sapatinho não desencantou. E o que foi que fez com que ela percebesse o erro? Seus olhos. Os meus olhos, que foram enganados, só repetiram a velha história já sabida. Viram aquilo que a memória me contava.
É isso que a memória faz: repetir o já sabido. Mas ela, se fosse recontar a história, teria de inventar outra que explicasse o sapatinho de cristal ou que o eliminasse.
O canteiro da memória é lugar onde só nascem pontos de exclamação. O canteiro da invenção é o lugar onde nascem os de interrogação. Como disse E. E. Cummings: "Sempre uma resposta bonita que pergunta uma pergunta mais bonita ainda."
Recebi da professora Edith Chacon Theodoro uma carta digna de uma educadora e, anexada a ela, uma lista de perguntas que seus alunos haviam feito, espontaneamente.
Impressionou-me, em primeiro lugar, o fato de ela ter dado tanta atenção às perguntas dos seus alunos. Note que elas foram feitas "espontaneamente", eram pontos de interrogação diferentes naqueles canteiros, totalmente diversas das respostas que estavam "presas" nas "grades curriculares". Talvez por elas não serem canteiros férteis para as interrogações que nascem nos alunos... Quem sabe cemitérios.
"Por que o mundo gira em torno dele e do sol? Por que a vida é justa com poucos e tão injusta com muitos? Por que o céu é azul? Quem inventou o português? Como os homens e as mulheres chegaram a descobrir as letras e as sílabas? Como a explosão do Big Bang foi originada? Será que existe inferno? Como pode ter alguém que não goste de planta?"
Continuam: "Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Um cego sabe o que é uma cor? Se na arca de Noé havia muitos animais selvagens, por que um não comeu o outro? Para onde vou depois de morrer? Por que adoro instrumentos musicais se ninguém na minha família toca nada? Por que sou nervoso? Por que há vento? Por que as pessoas boas morrem mais cedo? Por que a chuva cai em gotas e não tudo de uma vez?"
Essas perguntas parecem tão ingênuas que nos fazem rir. Mas elas são revelações das funduras das almas e das inteligências das crianças e dos adolescentes. Revelam não só a sua curiosidade sobre o universo como também sua dimensão ética, a preocupação com a justiça, com a beleza, com o mundo dos valores religiosos, com a mitologia...
Da próxima vez vamos brincar com essas suas perguntas.

Rubem Alves

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