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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Telma Weisz: "A culpa pelo fracasso não é do aluno"

A educadora critica os professores que insistem na cartilha para alfabetizar e diz que é preciso aprender a ensinar de outra forma.






Mais de 40% das crianças brasileiras que ingressam na 1a série do Ensino Fundamental não são aprovadas, de acordo com dados do Ministério da Educação (MEC). Ao final de um ano de aulas, elas não aprenderam a ler e a escrever. É contra essa maré de fracasso que rema a educadora carioca Telma Weisz. Doutora em Psicologia da Aprendizagem pela Universidade de São Paulo (USP), uma das criadoras dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa de 1ª a 4ª séries e consultora do MEC para projetos de formação de professores, Telma considera-se uma privilegiada porque teve como um de seus orientadores a argentina Emilia Ferreiro, co-autora (junto com Ana Teberosky) de Psicogênese da Língua Escrita*, livro considerado um divisor de águas na história da alfabetização. Aos 55 anos e mãe de um casal de filhos, Telma integra o Comitê Técnico do Crer para Ver, da Fundação Abrinq, é consultora da Fundação Kellog e trabalha no projeto pedagógico da escola mantida pelo Projeto Axé em parceria com a prefeitura de Salvador

    . Nesta entrevista, ela mostra que existe, sim, um caminho para acabar com a evasão e a repetência nas escolas. 

    O que mudou no modo de ver e ensinar a alfabetização? 
    Telma Weisz: Antigamente se imaginava que para ler era preciso primeiro aprender o sistema de escrita e, então, começar a interpretar textos. Hoje sabemos que a capacidade de leitura não depende do conhecimento do valor sonoro de cada letra ou de saber juntar uma letra a outra. É preciso conhecer as características da linguagem escrita, que mudam conforme o gênero do texto. Não basta saber ler "Vovô viu a uva" para entender um jornal. É preciso conhecer esse tipo particular de linguagem. 
    Essa visão está presente nas salas de aula?
    Telma: Infelizmente, não. Muitas crianças continuam sendo alfabetizadas pelo método tradicional, que é terrivelmente cego e empobrecedor. Para elas, os atos de ler e de escrever não fazem sentido. O professor apenas reproduz a seqüência que está na cartilha: leitura, cópia, treino de famílias silábicas e coisas do tipo. E o aluno faz o que o professor pede porque não tem opção além de aceitar as regras do jogo.

    Quais são as conseqüências de ser alfabetizado dessa maneira?
    Telma: As piores possíveis. Durante os quatro primeiros anos do Ensino Fundamental, a maioria dos professores continua alheia às mudanças previstas nos Parâmetros Curriculares. Eles não ensinam os alunos a ler diferentes tipos de texto só martelam a cartilha. A partir da 5ª série, no entanto, a adaptação está sendo mais rápida e a escolaridade já depende da capacidade do aluno de aprender a aprender. Na vida real, o que se vê é um professor de História da 6ª série, por exemplo, distribuir um texto em sala. Os alunos lêem, mas não entendem nada, e alguns são reprovados. Daí, cria-se um jogo de empurra. O professor de História acha que não é obrigação sua ensinar o menino a ler e culpa o de 1ª a 4ª. Esse, por sua vez, engana-se ao acreditar que não tem de ensinar a ler textos históricos. Enquanto isso, o pobre do estudante fica ao deus-dará.

    Existe diferença entre aprender a ler e ser alfabetizado? 
    Telma: Há cerca de trinta anos, alguém que dominava a capacidade de decodificar, que reconhecia letras e palavras, ainda que não fosse capaz de ler e usar a escrita de uma forma útil para sua vida, estava dentro do chamado analfabetismo funcional. A pessoa fazia as primeiras quatro séries do Ensino Fundamental e, no final, só sabia assinar o nome, tomar um ônibus ou, quem sabe, ler um bilhete. Mas ela não era um usuário da escrita e na vida cotidiana não conseguia extrair sentido das palavras nem colocar ideias no papel por meio do sistema de escrita, como acontece com quem realmente foi alfabetizado.

    Qual é o papel da literatura infantil na alfabetização?
    Telma: É fundamental. Grandes escritores dedicaram-se e continuam se dedicando a escrever textos para crianças. Mesmo que elas não saibam ler, porque sempre há alguém para fazer isso. O contato com a literatura desde os primeiros anos de vida é essencial para semear o interesse pela linguagem escrita. Acredito, porém, que devemos tomar muito cuidado com o que se convencionou chamar de material paradidático. Esses textos se baseiam na visão de que é preciso escrever de forma simplificada, tanto do ponto de vista textual como do fonológico, para que os pequenos possam ler sozinhos. Ou seja, é uma concepção que casa com a da cartilha, de que ler é apenas combinar letras. Para mim, isso não é literatura.

    O que a senhora acha das classes de alfabetização, prévias à 1ª série?
    Telma: Essas classes, que funcionam em muitos Estados do Norte e do Nordeste, seguram os alunos fora do ensino regular até que eles aprendam a ler. Isso é um crime. Há crianças com idade para estar na 3ª série que continuam nessas classes. A 1ª série tem de ensinar a ler, se a criança ainda não tiver aprendido. Caso não consiga, o trabalho deverá continuar na 2ª série. Nós, professores, temos a obrigação de dar mais ensino ao aluno que precisa. A escola é o lugar onde as pessoas são ensinadas, e se não aprendem a culpa não é delas.

    Como ensinar melhor, então? 
    Telma: No caso específico da alfabetização, Emilia Ferreiro mostrou como todos nós damos os primeiros passos no mundo da escrita e como as ideias vão sendo progressivamente transformadas pelo próprio esforço de entender esse sistema. Ela provou que o conhecimento é construído. Sabendo disso, o professor deve observar os trabalhos de seus alunos e entender em que momento do processo cada um está. Só assim será possível oferecer o ensinamento correto. A alfabetização tradicional não leva em conta o conhecimento que cada criança domina. Trata todas como iguais e ocas, um vazio a ser preenchido.

    É como se a escola ignorasse que as crianças também aprendem fora da classe, não?
    Telma: Sem dúvida. Quando a criança tem a possibilidade de participar ou mesmo observar situações em que a escrita e sua linguagem específica estão presentes, ela vive num ambiente alfabetizador. É preciso, no entanto, tomar cuidado com a expressão "ambiente alfabetizador". Muita gente, com a melhor das intenções, confunde a ideia. Não basta encher a classe com coisas escritas nas paredes. É muito mais do que isso.

    Alguns professores de 1ª série reprovam alunos que cometem erros de ortografia. É correta essa atitude?
    Telma: Não, porque o aluno está no meio do processo. No início, ele acredita que a escrita está ligada a desenhos. Depois, compreende que é preciso usar letras, mas muitas vezes associa o número de letras à quantidade de sílabas. Chegar à fase alfabética e entender que para formar o som "ba" são necessárias duas letras é um estágio importantíssimo, mas não o final. Ainda falta aprender ortografia e pontuação. E isso só é possível lendo textos. Textos verdadeiros, livros, jornais, revistas não aqueles inventados para ensinar a ler. Por essa razão o Ensino Fundamental tem oito anos. Existe uma idéia estapafúrdia de que, quando o aluno domina a escrita alfabética, a ortografia e a pontuação têm de vir junto. Se fosse assim, o que fariam os professores da 2ª à 8ª séries?

    Essas ideias sobre a alfabetização foram desenvolvidas por Emilia Ferreiro há vinte anos. Elas continuam sendo as mais avançadas? 
    Telma: Na área da aquisição da linguagem escrita, nada foi construído depois. Não se faz uma revolução conceitual todo mês. É uma mudança de paradigma que acontece em intervalos de tempo muito grandes. Quando li Psicogênese da Língua Escrita, tive a sensação de estar diante de um acontecimento histórico.

    A senhora foi uma das divulgadoras dessas ideias no Brasil. Que impacto elas produziram nessas duas décadas?
    Telma: No começo dos anos 80, esses conceitos entraram no país diretamente via escola pública, graças ao esforço de um grupo de pessoas que viam neles um instrumento poderoso para ajudar as crianças a superar uma tradição de fracassos. Pensávamos que apenas anunciando a boa nova provocaríamos uma grande transformação. Isso de fato ocorreu na rede estadual de São Paulo e em Porto Alegre. No resto do país, a mudança está sendo lenta, por causa de sua própria natureza, mas também não está tendo a profundidade que deveria. Muitos professores conhecem as idéias de Emilia, mas isso não se reflete em sua prática de sala de aula. É preciso penetrar no que eu chamo de imaginário profissional do professor para impulsionar uma modificação significativa.

    Como fazer isso? Telma: É essencial mudar a formação dos professores. Recentemente, conseguimos reconhecer que a escola produz analfabetos. Falar isso há dez anos gerava um desconforto insuportável. A escola que reprovava muitos alunos era vista como boa. Hoje, como incompetente. A função da escola é ensinar. Só que muitos professores que estão formando os novos colegas não sabem desenvolver uma prática diferente da apresentada na cartilha. Já existe uma proposta de prática pedagógica testada e avaliada. A diferença em relação à cartilha é que ela não pode ser oferecida aos estudantes de Pedagogia no formato de um método do tipo "faça isso e aquilo". Essa nova proposta exige que o professor pense, reflita sobre seu trabalho. Os estudantes lêem textos sobre Emilia Ferreiro na universidade, mas têm orientações mínimas, absolutamente insuficientes, sobre o que fazer em sala de aula. Quando chegam à escola para lecionar, acabam se pautando pela tradição. O que guia suas mãos é a prática de quem os formou do jeito errado.

    Por que é tão importante ser alfabetizado?
    Telma: O domínio da leitura e da escrita está diretamente relacionado à progressão da escolaridade, que, por sua vez, está diretamente ligada à cidadania. O mundo do analfabeto é muito pequeno. Quem tem acesso a notícias apenas via televisão tem menos condições de exercer a cidadania, no sentido de conhecer direitos e deveres, do que quem lê jornais, revistas e livros. Sem falar na internet, o meio de comunicação mais avançado, que tornou novamente fundamental o conhecimento da escrita. A questão da cidadania passa pelo direito à informação e pela possibilidade de ter voz. E a voz, nesse caso, é a escrita.

    A questão chave, assim, é a cidadania?
    Telma: Sim, mas não é a única. Existe uma pressão social para aumentar e melhorar o acesso à educação. Há trinta anos era possível sobreviver no mundo do trabalho com um parco conhecimento da escrita. Quantas pessoas que não sabiam ler estavam à nossa volta, nessa época? E hoje? Viver sem ser alfabetizado é impossível num mundo em que os anúncios de emprego pedem faxineiro com Ensino Médio completo.

    Em quanto tempo o Brasil deve erradicar o analfabetismo?
    Telma: Duvido que alguém se arrisque a fazer uma previsão exata, por mais que o analfabetismo esteja acabando. Só digo que o meu sonho é viver o suficiente para ver um Brasil com taxas de analfabetismo semelhantes às da Europa e dos Estados Unidos.


    Psicogênese da Língua Escrita, Editora Artmed, (51) 330-3444, R$ 28,00
    Texto retirado na integra de: revistaescola.abril.com.br
    Denise Pelegrinno

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